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Durante três anos, entre 2007 e 2010, o antropólogo Inácio Dias de Andrade manteve convivência diária com os 7 mil habitantes da comunidade de Pinheirinho, no estado de São Paulo. A pesquisa foi tema de seu mestrado na Universidade de São Paulo. O que segue são seus relatos sobre o que ele conheceu da auto-organização dessa comunidade que conquistou com as próprias mãos o direito à moradia, e alguns fragmentos dos escombros que a ação policial deixou para as quase 2 mil famílias despejadas da área no dia 22 de janeiro.
Pinheirinho, São José dos Campos (São Paulo), Brasil. A ação do Governo do Estado de São Paulo, que desalojou cerca de 6 mil pessoas do terreno de Pinheirinho – os números variam entre seis e dez mil. Nem mesmo a prefeitura tem a contabilização precisa –, na cidade de São José dos Campos (São Paulo), no dia 22 de janeiro, tentou conquistar o apoio da opinião pública a essa ação truculenta ao associar os moradores do Pinheirinho a “bandidos e vagabundos”.
Convivi três anos com os moradores do local e posso afirmar que, ao contrário do que se imagina, não havia ausência de regras ou desordem de qualquer tipo. Muitos dos chamados “ladrões” ou “vagabundos” cumpriam uma dupla jornada de trabalho. Após trabalharem em seus empregos, que garantiam seu sustento e o de sua família, organizavam reuniões, assembleias, mutirões e votações para manter a ordem e paz no lugar, organizar o terreno e tomar decisões.
O terreno foi dividido, desde o início, em setores que podiam comportar um número determinado de casas, evitando a superpopulação do local. Às terças-feiras, cada setor se reunia, após o horário de trabalho dos moradores – geralmente às seis da tarde. Nos sábados, no mesmo horário, os moradores formavam uma Assembleia Geral, que contava com os encaminhamentos feitos anteriormente em cada setor. O barracão onde ocorria as Assembleias foi um dos primeiros a serem derrubados pela operação policial do dia 22.
Nesses espaços de gestão democrática eram decididas as regras gerais de convivência: maus tratos a mulheres e crianças, por exemplo, poderiam resultar na expulsão do agressor, ou quando havia uma desavença entre vizinhos era sempre trazida para a ponderação dos demais.
Delimitavam-se também as zonas que seriam destinadas à preservação ambiental, ao plantio de alimentos ou locais de risco onde não se poderiam construir casas. Além disso, nesses locais, eram resolvidas questões relativas à segurança da população do local e do entorno. Roubo, tráfico de drogas ou quaisquer outras atividades ilícitas eram rigidamente controladas pelas lideranças e moradores, pois todos estavam cientes que qualquer crime ocorrido no local seria motivo para a criminalização de todo movimento.
Durante todos os anos de existência do acampamento, não foi registrada uma morte sequer no local. Ao invés de vagabundos, o movimento se constituía num microcosmo de atuação democrática. Por meio desses estereótipos, o governo insiste em impedir o acesso dessa população a um de seus direitos básicos, o de moradia.
Escombros e lágrimas
A truculência policial na reintegração de posse que se verificou no Pinheirinho, infringiu seriamente os direitos e a cidadania dos moradores da área. Os relatos são inúmeros. Um dia após o início da operação policial, uma multidão estava em volta do terreno da Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e mais outros sem número de pessoa encontravam dentro dela. Estavam deitadas no chão, nas calçadas, nos bancos, nos colchões retirados de última hora ou emprestados. Estavam sem água ou comida provisionada. Relatavam histórias atemorizantes sobre o dia anterior.
As notícias que chegavam davam conta de três a cinco mortes, incluindo a de uma criança pequena. Embora essas mortes não tenham sido confirmadas, o clima de confusão era grande, muitos ainda não tinham encontrados seus parentes. A prefeitura não fez o cadastro de todos e deixou essa atividade para o momento mais tenso da operação: o da triagem, uma tenda de atendimento onde mais tarde estaria instaurada uma praça de guerra. A revolta misturada com a tristeza de ver suas casas demolidas, somava-se às feridas em seus corpos e à possibilidade de terem entes queridos mortos, colocando todos num grave estado emocional.
Os moradores haviam sido acordados naquela manhã com os helicópteros, tropa de choque, gás de pimenta e balas de borracha. Vídeos, fotos e testemunhos que correm na internet mostram que policiais também usavam armas letais. Um morador recebeu uma bala nas costas. Uma moradora me contou que uma policial feminina sacou a arma para ela.
Segundo testemunhos dos moradores, a polícia entrou de casa em casa retirando famílias que tomavam o café da manhã ou ainda dormiam. De acordo com uma moradora, dois policiais entraram em sua casa, jogaram-na para fora enquanto atiravam os pratos de comida de seus filhos na parede, sob os gritos: «Agora aqui é não é lugar de comer mais» ou «Estamos cumprindo ordens». Assustada, a ocupante me contou que morou durante quatro anos na Rocinha, favela do Rio de Janeiro, a maior da América Latina, «mas que nunca havia visto coisa parecida». A polícia do Rio de Janeiro ficou famosa pela sua truculência e desrespeito aos direitos humanos nas últimas investidas na «guerra ao tráfico».
No centro de triagem da prefeitura, uma das moradoras que se arriscou a ser cadastrada foi recebida com tiros de bala de borracha no corpo e no dedo do pé. Existem vídeos na internet também mostrando conflitos no abrigo da prefeitura. Muitos moradores se recusaram a receber o atendimento da prefeitura por medo. “Eu vou aceitar ajuda de quem acaba de me expulsar de casa?”, dizia um morador. Muitos temiam ser separados de suas famílias depois de cadastrados. Alguns contavam que, após a triagem, um marido foi separado da esposa e dos dois filhos. A tenda erguida para comportar todos os moradores era insuficiente. Se não fosse a recusa de grande parte da população em ir para esse centro, justamente devido a essa desconfiança, ele certamente estaria superlotado e em piores situações.
Também houve denúncia de maus tratos na região da Igreja. Moradores contam que a Polícia Militar jogou bomba de gás por cima do terreno para forçar os acampados a saírem. Quando saem para rua são abordados pelos oficiais, e muitos deles acabam presos.
As autoridades insistem em dizer que a reintegração foi pacífica. Uma mulher, vizinha da Igreja, teria sido espancada por tentar conter o abuso das autoridades. Depois de noites tensas naquele local, os indivíduos não resistiram e seguiram para um centro poliesportivo disponibilizado pela prefeitura, o Ginásio do Morumbi. Foram quatro horas de caminhada até o local designado. Muitos passaram mal ou desmaiaram sob o sol forte. Segundo notícias publicadas na imprensa, no local faltam colchões, mantimentos, produtos de limpeza, e o ambiente não é higienizado. A prefeitura não o limpa e nem permite que os moradores o façam, já que não fornece material de limpeza. Muitos não conseguem entrar no banheiro devido ao mau cheiro. Nas tendas, as pessoas passam mal com o calor.
Os moradores também estavam sendo impedidos de voltar às suas casas para recolher os seus pertences. Diversas imagens veiculadas na TV e nas redes sociais mostram escombros com móveis de moradores no meio. Outros acompanharam a demolição de casas, sem a retirada dos bens que estão ali dentro.
O proprietário oficial do terreno contratou tratores privados para derrubar as casas mais rapidamente, acabando com as posses acumuladas durante vidas inteiras. Muitos deles ainda estavam com medo de saques ou da destruição de seus bens, outros já haviam perdido tudo. Um morador gastou os R$ 350 de seu salário como pedreiro em mantimentos para sua família, seis pessoas, ao todo. Com a desocupação no domingo toda a comida estava «confiscada» pela polícia. Todo o consumo de sua família foi reduzido aos R$ 50 que conseguiu economizar.
Muitos estão sem documentos e disseram que estavam sendo abordados constantemente pela polícia no entorno do local, sendo levados em seguida para a delegacia. A contagem oficial de presos até o momento é de 22. Grande parte das pessoas não consegue nem sair para trabalhar, estão sem documentos, sem carteira de trabalho e sem dinheiro. Campanhas de arrecadação vêm sendo feitas em todo o Brasil.
Moradia, um direito para poucos em São José dos Campos
São José dos Campos conta com um déficit habitacional de 27 mil famílias. A região onde Pinheirinho se encontra foi contemplada com a construção de 524 casas até 2011, em quase dez anos de políticas habitacionais da prefeitura. Segundo o PNUD, órgão das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em 2000, São José contava com uma população de seis mil pessoas vivendo em condições subnormais de habitação. Em 2011, num domingo, em um único dia e em apenas uma área da cidade, cerca de seis mil pessoas perderam suas casas no Pinheirinho.
Durante meus três anos de pesquisa, nenhum dos interlocutores com os quais falei hesitou em responder onde e quando começou o Pinheirinho, e todos vinculam o início do movimento à “ocupação das casinhas do CDHU”, no Campo dos Alemães, em 2003. No discurso dos moradores, das lideranças e dos indivíduos ligados ao sistema jurídico e partidário que davam suporte ao movimento, as “casinhas” aparecem sempre com uma referência para o começo do processo de “luta”.
A ocupação das casas sempre foi justificada pela má qualidade em que se encontravam e pela demora na conclusão e entrega para a população carente, situação agravada pelo fato de muitos ocupantes dizerem já estar na fila para conseguir uma casa na prefeitura há mais de oito anos.
A exigência dos moradores da transformar um terreno sem função social – cujo dono é réu em uma investigação da Policia Federal – numa Zona Especial de Interesse Social, regulamentada por uma série de leis, é uma reivindicação justa e necessária. Ainda mais quando se considera o déficit habitacional que a cidade de São José dos Campos sofre há anos e que a prefeitura insiste em contornar com políticas paliativas.
Dito isso, faz-se necessário dizer que os moradores do local não procuram viver na ilegalidade, estão dispostos com essa mudança a pagar IPTU, água, luz e todas as demais taxas municipais. Ao contrário do que se pensa, eles não querem viver privilegiadamente, eles querem ser inseridos numa ordem urbana que sempre lhes foi desfavorável.