São José dos Campos, Brasil. Domingo, dia 22 de janeiro, quase 1.700 famílias que vivem no Pinheirinho, desde 2004, despertaram em meio a um pesadelo. Com um aparato bélico – helicópteros, bala de borracha (e letais também), além de inúmeras bombas de gás lacrimogênio -, cerca de 2 mil policias irromperam no terreno dessa comunidade para retirar as pessoas de suas casas. Cumpriam uma ordem de reintegração de posse para devolver o terreno a seu proprietário. A comunidade, entretanto, foi pega de surpresa, já que dois dias antes a Justiça Federal havia anulado temporariamente a operação.
Foi um domingo de horror na cidade de São José dos Campos. A polícia do estado de São Paulo retirou brutalmente o direito à moradia a mais de 6 mil pessoas para entregar a área, de 1,3 milhão de metros quadrados, a um conhecido personagem dos escândalos financeiros e policiais do Brasil: Naji Nahas.
A quem serve o estado de São Paulo
Nahas foi condenado em 1997, a 24 anos de prisão por crime contra a economia popular. Consequência desses crimes foi a falência da sua própria empresa, a Selecta, em 1989. O terreno do Pinheirinho atualmente faz parte da enorme massa falida dessa empresa. Declarado inocente em 2004, Nahas não tardou muito para se envolver em novo escândalo: em 2008, foi preso sob acusação de lavagem de dinheiro em paraísos fiscais.
O problema não é apenas o personagem para quem será destinado esse terreno. Soma-se a isso o fato de ninguém saber, até hoje, como essa terra foi parar nas mãos de Nahas. A propriedade era de um casal de alemães – sem herdeiros – assassinados brutalmente, em 1969, sob circunstâncias não esclarecidas. Não se sabe como nem por quê o terreno passou das mãos do Estado, responsável automaticamente pelas terras após a morte do casal, para Benedito Bento Filho, o ‘comendador’, responsável pela venda do terreno a Naji Nahas nos anos 1980. Atualmente, o proprietário tem interesse direto na desocupação do Pinheiirnho. O terreno, avaliado em R$ 180 milhões, pode ser vendido e ter esse valor descontado da massa falida da Selecta, abatendo a dívida milionária que está no nome de Nahas. Para se ter uma ideia, em dezembro de 2011, o débito da empresa em IPTU com a prefeitura de São José dos Campos alcançava R$ 15, 2 milhões.
Pequenos destroços de histórias
Renato Crispim Rbiniter, tem 42 anos, estava lá quando, em 2004, inúmeras famílias adentraram no “campão” onde hoje é o terreno do Pinheirinho. “Era só mato, cobra, bicho. Limpamos tudo e construímos nossas casa em mutirão”, lembra. Foi só em 2008, depois de um ano de construção, que Renato deixou seu barraco para viver em sua casa de alvenaria. “Lá morava eu e minha esposa, era uma casinha de três cômodos, banheiro, piso… Durante os oito anos que vivemos no Pinheirinho, vivíamos muito bem, não tínhamos do que reclamar”.
Quando houve a primeira ordem de despejo, poucos dias antes, a comunidade de Pinheirinho estava preparada para resistir. “Homens, mulheres crianças, estávamos com escudos de plástico e armados com madeira e canos de PVC, armas não, porque não temos. Estávamos dispostos a resistir até o último. O que íamos fazer: perder tudo?”. Entretanto, na sexta-feira, dia 20, a justiça anulou a reintegração por 15 dias. “Sábado foi dia de festa, uma brincadeira. Mas o inesperado aconteceu, nos pegaram de surpresa”, lamenta.
Naquele domingo fatídico, o telefone de Roberto tocou às 3 horas da manhã. “Recebi uma ligação do centro da cidade dizendo para que acordasse porque São José dos Campos estava cheio de Polícia”. Ele conta que todo mundo ainda estava cansado da festa e, por isso, não deu conta de acordar seus companheiros. “Umas 4 horas da manhã, soltei fogos para ver se acordava o pessoal, mas não tive muito sucesso”. Às 6 horas da manhã, quando a polícia entrou no terreno, ele estava em frente da sua casa. “Saímos gritando para chamar as pessoas, mas não deu tempo, chegaram quebrando tudo”.
Lembra do helicóptero passando e atirando bomba de gás lacrimogêneo em cima das casas e da truculência da polícia. “A polícia chegou berrando com todo mundo, xingando, maltratando, diziam: ‘temos ordem para cumprir e vamos cumprir’”. Conta que mandaram ele e sua mulher entrarem em casa, pegar roupa e ir para a triagem. “Marcamos o que tínhamos de móveis, trancamos a casa e saímos”.
No centro de triagem que recebia os moradores recém desalojados e ainda sob estado de choque, a situação a que eram expostos não tranquilizava. “Durante o processo de triagem eles passavam e davam tiro de borracha nos moradores lá dentro, tive que socorrer algumas pessoas. Meu colega estava fugindo da violência da triagem com seu filho e levou um tiro de bala letal, está internado no Hospital da Vila”, conta Roberto.
Enquanto Roberto estava na triagem, recebeu um telefonema de que um caminhão já estava levando suas coisas. “Voltamos e vimos a porta de casa arrombada: para mim isso é roubo!”. “Deixaram para trás nosso guarda-roupa, a cama de casal, jogo de cozinha e um armário que ainda nem terminei de pagar. Disseram que não cabia no caminhão”. Não foi só. “Trabalho com reciclagem, tinha mais de R$ 2 mil em material que eu ia vender no dia seguinte: eles acabaram com tudo”. Roberto assistiu o trator passar por cima de sua casa e de seus pertences. “O que construí em um ano, derrubaram em dois segundos”. Ele foi uma das pessoas que conseguiu recuperar algum bem, muitas não conseguiram ficar com nada. “Minha vizinha perdeu tudo, não deixaram ela entrar para tirar as coisas dela”, menciona um exemplo dentre inúmeros como esse que se escutou dos moradores.
“A desocupação não foi violenta para quem aceitou sair. Quem tentou defender o que tinha, apanhou muito”. Foi o caso de um morador de 70 anos que se recusou a deixar sua casa, como conta Roberto. “Nunca vi nada assim na minha vida, não tem como descrever, foi feio demais. As mulheres nem conseguiram dormir direito, desesperadas”, conta Roberto.
Sérgio Henrique Pires, de 42 anos, deixou o terreno assim que teve início a reintegração. “Como estávamos na entrada do Pinheirinho fomos dos primeiros a ser tomado, sai inteiro”. Ele tinha deixado o Pinheirinho para buscar sua mulher no serviço pouco antes da operação policial. “Quando voltamos, chegamos junto com a Polícia Militar. Não consegui chegar em casa, parei na casa de uns conhecidos bem na entrada. Estávamos sitiados: era bomba de gás lacrimogênio e tiro de borracha para todo lado”. Não resistiram, pois não estavam esperando. “Muitos estavam dormindo, a polícia arrancou até criança da cama para fora. Foi terrível. Em algumas casas, pessoas estavam comendo e a polícia entrou e jogou os pratos de comida no chão”, conta Sérgio.
“Assim que deixamos o terreno ficamos reunidos na frente da comunidade”. Sérgio menciona o apoio das pessoas do bairro vizinho, conhecido como Campo dos Alemães, além dos muitos atos de apoio isolados. Para ele, que é coordenador da Resistência Urbana – uma frente nacional de organizações que lutam por moradia – o que aconteceu naquele domingo não foi apenas uma desapropriação: “o que fizeram foi uma perseguição política e ideológica: estavam lá para dizimar o movimento”, afirma.
Sérgio foi viver em Pinheirinho no ano de 2005. “Fazia parte do MST, cheguei lá para apoiar. Acabei gostando e fiquei”. Sobre o fato de terem sido pegos de surpresa, ainda com com o gosto da festa de comemoração pela decisão da Justiça de adiar a reintegração, a análise que faz é positiva. “Se chegassem alguns dias antes estávamos preparados para resistir, mas analisando com nossos companheiros, chegamos à conclusão de que foi melhor sermos pegos de surpresa, do contrário, seria uma desgraça muito grande, maior do que já foi, haveria muita morte”.
Abrigados?
A prefeitura de São José dos Campos organizou alguns abrigos para receber as famílias desalojadas após a triagem. As condições a que estão submetidas essas famílias, entretanto, não são nada dignas.
Roberto foi para um abrigo localizado no ginásio do Morumbi, ao ser indagado sobre como está a situação lá dentro, responde: “Nossa senhora, não dá nem para explicar. Estamos em quase 400 pessoas, sem contar as crianças, um colchão para cada, só dois banheiros e três chuveiros”.
À parte a condição insalubre, os moradores que se encontram nesse e nos demais abrigos não escaparam da coerção policial. No ginásio do Morumbi, Roberto conta que a polícia fecha o portão às 21 horas. “Já falamos para eles que isso aqui não é prisão”, protesta. Mas o controle não para aí. “Nos deram pulseirinhas para usarmos e sermos identificados quando saíssemos. Aqui nesse abrigo ninguém está usando, todos tiraram: isso não é cadeia e não estamos sendo rastreados!”. Segundo conta, as pessoas que ficaram com a pulseirinha ao saírem foram identificadas pela polícia que as mandou voltar e as agrediu. “A polícia quebrou duas costelas de uma colega meu que saiu com a pulseirinha”, relata. A imprensa está proibida de entrar nos abrigos.
“Agora não tenho onde morar. Estamos esperando conseguir nossas casas. É uma pouca vergonha despejarem famílias e trabalhadores dessa área para entregá-la para um ladrão especulador de terra”, lamenta Roberto.
Vizinhança solidária
Maria de Lurdes da Costa, 64 anos, tem três sobrinhas que viviam no Pinheirinho e estavam lá na hora da desocupação. Por alguns dias teve uma delas, Gilmara Costa do Espírito Santo, como desaparecida, mas finalmente conseguiu contatá-la. “Gilmara saiu com seu filho de 3 anos e foi direto para o bairro do Satélite, mas seu celular ficou sem bateria e não consegui falar com ela”. Foram três dias de desespero. “Até agora não recuperei minha saúde”, lamenta com alívio. Até o momento são cerca de 6 desaparecidos e existem suspeitas de mortes, mas em meio à dificuldade de se apurar as informações, não se tem nenhum dado oficial por parte dos movimentos ligados ao Pinheirinho.
De onde Lurdes mora dava para ver toda a operação policial de reintegração de posse. “Subi na laje e via quando estavam jogando bomba na casa das minhas sobrinhas”. As outras duas sobrinhas de Lurdes estão em sua casa desde que perderam a delas. Sobre o operativo, conta impressionada: “Fico pensando: um adulto sabe se defender, mas quando vejo aquele monte de criança… Tinha criança demais, mulher chorando com criança no braço, no carrinho… uma tristeza, não podiam fazer isso”.
A solidariedade dos vizinhos é bastante, mas não suficiente. “Aqui um acolhe uma família, outro outra, mas é muita gente”. E conta entristecida: “Vi gente de baixo de chuva passando com o colchão nas costas, sem ter onde dormir”. “Peço a deus para dar um caminho para o pessoal, porque está difícil. Não sei como foram capazes de fizer isso que com eles”. À indagação de Lurdes, Sérgio deixa uma possível resposta: “Essa é a lei no Brasil: Nós que damos função social para aquela terra, somos jogados na rua e a terra volta para esse cara que a adquiriu de forma totalmente irregular. Só no Brasil”.
Excelente artigo. Em relação ao destino do que se arrecade com a venda do terreno, entendo que deve ir a pagar a dívida que a empresa tem com seus funcionários, antes que pago de IPTU.
Me parece importante ler neste fato, se agrega à desastrada «limpeza» da Cracolandia e ao arbitrário «remanejamento» na fundação CASA, onde se substituirão psicólogos e assistentes sociais por pessoal de instituições de segurança armada. Na história houve outras «limpezas» de triste lembrança… Não acho que essa política mereça ser repetida no estado mais rico da federação.
é isso aí Carlota… mas o estado mais rico da federação é tb bastante conservador, basta olhar para o governador e prefeito