Copa das tropas e lutas de baixo

Texto e Foto: Gabriela Moncau

São Paulo, Brasil. Dilma Rousseff nem abriu a boca. Mas bastou aparecer no telão do estádio do Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo, pra que o público branco e rico que conseguiu estar lá, o mesmo que tanto ela faz para agradar, ironicamente a mandasse tomar no cu. Inegável que mesmo os de verde e amarelo que só querem festejar os jogos sentem que algo não tá descendo bem nessa Copa. Mesmo as decorações pelas ruas e janelas da cidade, que a cada Copa costumam fazer parte da estética urbana, só apareceram de fato no dia mesmo da abertura. E em meio ao espetáculo que antecedeu o jogo entre Brasil e Croácia, um indígena soltou, no meio do gramado, uma pomba de um pano vermelho. Poucos viram, mas no pano lia-se “demarcação já”. Assim foi inaugurada a “festa” que mais encheu o bolso da FIFA na história.

A alguns quilômetros dali, a Tropa de Choque reprimia violentamente duas manifestações em uma tacada só. Um protesto se concentrou na frente do Sindicato dos Metroviários, reunindo movimentos, centrais sindicais e partidos políticos e tendo como principal pauta a readmissão dos 42 metroviários demitidos durante greve. O outro foi organizado pelo coletivo “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”. Bombas, tiros de borracha, detidos e dezenas de feridos. Coisa parecida acontecia em pelo menos outras 6 das cidades sedes da Copa pelo país.

E assim começou mais um junho intenso no Brasil. Em entrevista ao Desinformémonos, Juliana Machado, militante do Comitê Popular da Copa (coletivo de grupos e indivíduos contra impactos e violações de direitos humanos da Copa do Mundo), conta um pouco dos tempos militarizados vividos hoje no Brasil e das questões e articulações dos movimentos de baixo pra enfrentá-lo.

Uma pauta que aparece muito na imprensa e mesmo na fala da população é a questão dos gastos da Copa. Quem pagou os estádios? Como o Comitê vê essa questão dos gastos?

Claro que a população em geral, o senso comum, fica preocupada quando ouve que custou R$30 bilhões para fazer a Copa, e que vai gerar lucro para empresas privadas como a FIFA e suas patrocinadoras. Mas de fato a questão dos gastos é um pouco mais complicada. Quem pagou? É uma articulação nos três níveis de governo. No governo federal, existe financiamento público do BNDES e da Caixa Econômica Federal para construir os estádios. Apenas dois estádios são privados: o do Corinthians em São Paulo e o do Atlético Paranaense em Curitiba. Esses dois estádios receberam incentivos fiscais das prefeituras e dos governos estaduais de São Paulo e Paraná. Mas o resto, por exemplo o estádio de Brasília, que custou mais de R$1 bilhão, foi custeado pelo governo do Distrito Federal.

O governo federal tem falado que não é correto dizer que eles tiveram muitos gastos, porque os principais custos foram assumidos pelos governos locais. Mas o governo federal entrou com financiamento. E esse financiamento é muito facilitado. Tem taxas de juros muito abaixo dos valores do mercado. É um incentivo muito grande do Estado brasileiro para empresas construírem estádios e obras de infraestrutura, decisão que nunca foi discutida com a população.

Agora dizer que porque houve gastos com a Copa, não existe com a saúde e a educação não seria correto. Porque o orçamento de saúde e educação é um orçamento vinculado por lei e é muito maior que o orçamento da Copa. Então na verdade uma coisa não impede a outra.

O problema dos gastos é o problema do empréstimo de dinheiro público a juros baixos e o próprio uso do dinheiro público para fomentar lucros privados, que não foram discutidos com a população e que, principalmente, vão gerar uma dívida pública para os governos, que é um dos grandes legados negativos da Copa. Por isso queremos auditoria pública e cancelamento desse dívida que produziu um lucro de R$10 bilhões para a FIFA. É o maior lucro da história da FIFA.

Quais as principais reivindicações que o Comitê Popular da Copa traz?

Ainda nesse tema, um gasto que realmente nos preocupa em relação à Copa é em segurança pública. Mais de R$2 bilhões foram investidos, pelo governo federal, na segurança específica dos mega-eventos, incluindo Copa das Federações de 2013, Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016. E também a visita do Papa ao Brasil em 2013, que é considerada um mega-evento de acordo com a Lei Geral da Copa. Esses quatro mega-eventos receberam um investimento na segurança pública que na verdade é uma ocupação militarizada da cidade. Uma mostra disso é toda a repressão que a gente vem sofrendo, especialmente desde o ano passado, mas que também se observa por exemplo nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro ou na militarização da cracolândia em São Paulo.

Esse é o gasto que mais nos assusta. Boa parte desse dinheiro foi gasta em contratos do governo brasileiro com o Estado de Israel: em empresas de segurança israelenses que testam seus instrumentos de repressão contra civis no povo palestino. Existe essa cooperação tanto em compra de armas e tecnologia, quanto em treinamento.

Para além da segurança, nossa demanda é a liberdade de manifestação antes, durante e depois da Copa, como direito primeiro para garantir que a gente possa reivindicar todos os outros.

A gente também reivindica a moradia digna: foram 250 mil removidos para obras da Copa e das Olimpíadas no país todo. Com a Copa em Itaquera, houve valorização de mais de 97% do preço da terra. O preço dos alugueis subiu junto com o preço da terra e milhares de pessoas estão sendo indiretamente expulsas de suas casas. Uma mostra bem gritante dessa especulação imobiliária é a Ocupação Copa do Povo, que tem mais de quatro mil famílias há dois quilômetros do estádio.

Outro ponto: o trabalho ambulante. Hoje a gente sabe que alguns trabalhadores ambulantes podem trabalhar durante a Copa, mas para a Ambev, para a Coca-Cola, para o McDonald’s, e em condições precárias de trabalho. Alguns trabalhadores ambulantes preferiram essa condição do que a condição de prisão, perseguição, violência e apreensão de suas mercadorias. São por volta de 600 trabalhadores ambulantes que a prefeitura mediou para cadastrar junto às empresas patrocinadoras da Copa. Só que em São Paulo existem 138 mil trabalhadores ambulantes. Isso é um dado de 2011 então provavelmente existam mais. Essa estratégia de permitir que menos de 1% seja cadastrado para trabalhar na festa da FIFA é uma estratégia de criação de um discurso falso de que esse setor foi incluído.

Falando nisso, no centro vi outro dia pessoas usando uma camiseta escrito “População em situação de rua: os primeiros eliminados da Copa”.

Exato, tem também a questão da população em situação de rua. Desde 2010 a gente percebe um recrudescimento da violência contra essa população. Organizações que trabalham com essa população estimam em 20 mil pessoas hoje em São Paulo. Resultado também da política de produção de sem teto, que é a política de despejos. Enfim, com uma bolsa aluguel de R$300, essas pessoas não conseguem pagar o aluguel e vão para debaixo da ponte. Principalmente nas ruas do centro de São Paulo e nas avenidas que dão acesso ao Itaquerão, como a Radial Leste, tem acontecido cada vez mais ações de violência com a Tropa de Choque, a Guarda Civil Metropolitana e a Operação Limpeza Urbana, que são caminhões de lixo e trabalhadores contratados por empresas terceirizadas pela prefeitura, para jogar jato d’água e “limpar” a cidade.

O quinto ponto é a exploração sexual. É sabido que existe tráfico humano interno e externo ao país, e de exploração sexual principalmente infantil. A gente recebeu denúncias no Comitê Popular da Copa de meninas de 11, 12 e 13 anos nos arredores da obra do estádio em Itaquera. Essas meninas eram moradoras de favelas próximas do estádio, que também estão ameaçadas de remoção, que não tem acesso a saneamento, luz, água e, além de estarem ameaçadas no conflito da terra, acabam tendo seus corpos explorados e vendidos por meio das redes de exploração sexual.

Os governos tem promovido uma campanha de prevenção à exploração sexual, que leva em conta apenas os trinta dias de duração da Copa e os turistas que vem de fora. Então são cartazes nos aeroportos, grupos de fiscalização na porta do estádio em dia de jogo, etc. Tudo isso a gente sabe que é inócuo, porque essas redes de exploração estão capilarizadas, acontecem durante a própria preparação do evento. Essas denúncias que chegaram a nós datam desde 2012. A gente não sabe o quanto não chegou de informação. Além da infantil, há exploração de mulheres, de transexuais e transgêneros.

Que futebol é esse da Copa da FIFA?

O Comitê não é contra o futebol. Não é contra a festa do futebol. Mas é contra o roubo do futebol – que é o esporte popular por excelência no Brasil – por essas máfias que são a FIFA, a CBF [Confederação Brasileira de Futebol] e suas patrocinadoras, assim como a Globo, que é emissora oficial dos jogos. O futebol se torna uma mercadoria a ser vendida entre o comercial de uma patrocinadora e outra; e os torcedores, consumidores.

Enquanto isso, não há investimento no futebol de base no Brasil. O próprio processo de especulação imobiliária e transformação das cidades está acabando com os campinhos de várzea nas periferias. Então a gente percebe uma profunda elitização nos estádios, e a Copa é a coroação desse processo.

Contra esse modelo, a gente afirma que outra Copa é possível, outro futebol é possível. Foi pensando nisso que a gente organizou duas Copas rebeldes. E vamos realizar a terceira durante a Copa do Mundo.

Conta o que é a Copa Rebelde?

É um campeonato popular não competitivo, sem juiz, aonde a gente tem 32 times de movimentos populares. Então temos o time da Ocupação Esperança, o time do sítio São Francisco em Guarulhos (que estão ameaçados de despejo), o time da população em situação de rua, o time da Marcha da Maconha, o time do Movimento Passe Livre…

A Copa Rebelde traz a viabilidade de a gente fazer outro futebol e também outra forma de pensar o espaço público. A gente faz a Copa num terreno no centro de São Paulo. É um terreno público aonde se pretende fazer uma grande sala de dança da elite, um espaço suntuoso, de ostentação, que obviamente a população não vai ter acesso. Enquanto a gente sabe que esse espaço já vem sendo usado por times do bairro, que jogam futebol todo fim de semana lá, foi lá que se constituiu uma espécie de acampamento de população em situação de rua, alguns usuários de drogas, que foi removido pelo “programa braços abertos” da prefeitura, numa operação de limpeza.

Enfim, a ideia da Copa Rebelde é de mostrar que é possível fazer uma Copa com trabalhador ambulante vendendo suas coisas, com a população em situação de rua fazendo uma roda de samba, com a batucada dos movimentos de juventude, a Marcha da Maconha entoando seus cantos, com as ocupações se encontrando. A gente acredita que esse é o grande legado da Copa do Mundo 2014: a articulação dos movimentos desde baixo, inventando uma outra forma de se manifestar, outra estética de rua, que dribla a polícia, que convida o estado para dançar e que vai buscar furar esse bloqueio construído em torno da nossa liberdade de manifestação.

Como está a ofensiva do Estado do ponto de vista de criminalização das lutas?

A gente entende que já há alguns anos existe um processo de fechamento do cerco às lutas populares. Esse processo, que se dá cotidianamente nas periferias reprimindo os saraus, o funk, o hip hop, o grafite, é um processo que se volta agora para o palco do conflito, que é o centro da cidade, a av. Paulista, vias comumente tomadas em atos de rua.

Além desse investimento em equipamentos, câmeras, centros de controle, a própria ABIN, que é a agência de inteligência brasileira, admite que vem monitorando os ativistas através de escutas nos celulares, monitoramento de e-mails e redes sociais.

O que são os inquéritos políticos?

Um deles está acontecendo aqui em São Paulo, mas na verdade é uma ação nacional que vem acontecendo em várias cidades, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, Recife, Brasília. Aqui é um inquérito da Polícia Civil que não busca, como deveria ser por lei, investigar um crime, mas busca investigar pessoas. Pessoas que se envolveram na organização de manifestações, ou mesmo que participaram de atos, e até mesmo pessoas que não participaram de atos mas que postaram em suas redes sociais coisas sobre os protestos.

Esse inquérito investiga mais de 300 pessoas em São Paulo. A Polícia vem intimando as pessoas a depor. Parte delas vem se recusando a comparecer e com essa recusa, que é o direito ao silêncio, a polícia vem buscando as pessoas em casa coercitivamente. Houve casos de mandados de busca e apreensão de computadores, folhetos, livros. Em Porto Alegre teve um caso em que os militantes do Comitê Popular da Copa e do Bloco de Lutas contra o Aumento, tiveram livros do Bakunin, da Emma Goldman, confiscados como possível prova de ação criminosa. Se isso é democracia, então eu não sei mais o que é ditadura.

Como está a questão da tipificação do crime de “terrorismo”?

Além dos inquéritos, existe uma frente no legislativo e no poder judiciário. De uma maneira geral o Congresso Nacional está com mais de 10 projetos de lei que buscam regular as manifestações, como por exemplo com restrições de local, horário, autorização da polícia. Entendimento esse absolutamente contrário à decisão do Supremo Tribunal Federal, que em 2011 deu uma decisão muito importante para a Marcha da Maconha, depois de muita luta, dizendo que não cabe ao Estado limitar o direito constitucional à manifestação.

Vivemos um momento em que o poder legislativo busca limitar esse direito, com o apoio do poder executivo, que também enviou seus próprios projetos. Dentro desses projetos, dois nos preocupam bastante. Um é o PL 499/2013, que tipifica o crime de terrorismo: seria causar, infundir terror ou pânico generalizado mediante ameaça à integridade física de pessoas ou de bens. Nessa definição tão abstrata e ampla, a paralisação de uma via ou uma greve dos metroviários podem ser enquadradas como ações terroristas. E tem também o PL 508, que aumenta as penas de crimes cometidos durante manifestação.

Houve prisões preventivas de militantes, mas ninguém até agora permaneceu preso. Principalmente militantes anarquistas. Existe uma investida buscando associar o movimento anarquista a práticas supostamente criminosas. No último período principalmente, a mídia vem tentando associar a tática black block em manifestação de rua com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que é supostamente uma facção criminosa de São Paulo.

O que os movimentos tem buscado contra isso?

Seguir nas ruas, mas também buscar outras formas de se manifestar. O Movimento Passe Livre recentemente se acorrentou no prédio da secretaria de segurança pública para denunciar essa investida contra as lutas populares, teve repercussão.

Quais as perspectivas de luta pra esse próximo período em São Paulo?

A gente construiu, durante esses 3 anos, a estratégia de promover debates nas ocupações, nas comunidades afetadas, com os trabalhadores, com a juventude, enfim, debates sobre todos esses temas para disseminar informação. O Comitê também produz muito conteúdo, jornais, panfletos, vídeos, etc. São nossa forma de contrainformação sobre o que significa essa Copa.

Além da Copa Rebelde e dos atos de rua, a gente tem pensado ações lúdicas, para driblar a violência policial, o que a gente tem chamado de convidar o Estado pra dançar conosco. Uma dessas ações foi no 6 de junho, dia de jogo amistoso do Brasil, que fizemos um esculacho popular na casa do José Maria Marín. Marín é presidente da CBF, do Comitê Organizados Local da Copa (COL), um dos responsáveis pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog na ditadura militar, ex-governador biônico da ditadura e grande cartola da máfia FIFA e CBF. Esse esculacho teve como tema os 10 mortos dos estádios da Copa, 3 mortos em outros estádios que foram construídos seguindo o mesmo modelo da Copa e os 14 mortos que tivemos em manifestações desde junho de 2013.

Entre outras coisas, estamos ajudando a organizar a Copa do Moinho, campeonato popular de futebol na Favela do Moinho, que é a última favela do centro, e que vai durar o mês inteiro. Foi lá, inclusive, que fizemos também uma mani(festa)ção no dia da abertura da Copa. Uma festa em que a gente convidou a população a “formar quadrilha” conosco, fazendo referência a uma festa popular desse mês que é a festa junina. E além de tudo é uma das manifestações populares da cultura brasileira que a FIFA proibiu nas cidades sede do nordeste, pra que não houvesse concorrência com a festa das suas patrocinadoras. E assim inauguramos esse mês de lutas que vem por aí.

19 mayo del 2014

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