Em São Paulo há motivos para comemorar, mas sem fazer carnaval

Nathália Mota Sardelli Foto: Gabriel Gonçalves/Brasil de Fato

São Paulo, Brasil. “Mas são vinte centavos. Que diferença faz? É o patrão que paga”. Dentro de um ônibus lotado, uma auxiliar de limpeza reclamou da manifestação do dia 7 de Junho que, pela segunda vez naquela semana, atrapalhou o trânsito e fez sua volta para casa demorar ainda mais. A amiga a seu lado concordou: “até parece que o governo vai mudar alguma coisa”.  Mas desta vez o governo mudou. As manifestações frequentes em São Paulo encontraram eco e logo se alastraram para outras cidades do país. Surpresa, esperança, desconfiança e especulação viraram constantes na rotina dos paulistanos em junho.

As primeiras opiniões eram argumentos velhos conhecidos: “eles atrapalham o trânsito”, “isso é coisa de vagabundo”, “atrapalham os verdadeiros trabalhadores dessa cidade”. Em pouco mais de uma semana, algo mudou: famílias inteiras seguiam a marcha do dia 17, e até mesmo homens de terno e gravata gritavam palavras de ordem. Então o assunto das manifestações se tornou o assunto oficial em todas as mesas – dos bares às das escolas – e as declarações de repente se tornaram positivas. Até mesmo a Copa das Confederações ficou esquecida em sua estreia! Rapidamente, os grandes veículos da mídia brasileira retificaram suas posições, e o tom se tornou mais benevolente com os revoltosos, e mais crítico com os governos, numa relação com a opinião pública  de mútuos reflexo e influência.

O aumento da tarifa foi revogado, o governo federal anunciou propostas de reformas, mas os reflexos dos acontecimentos jogaram luz sobre novas questões, como a dúvida de se o país tomará de fato novos rumos ou os esforços de luta perderão força e serão marginalizados novamente. A entrada da classe média (ou grande massa) para o cenário do ativismo político é uma novidade para o Brasil, e é noticiada com entusiasmo -ainda que recebida com cautela por alguns setores.

Eduardo de Freitas Fonseca, sociólogo e professor de História na rede particular, deu a sua análise do problema, “um grupo jovem – a geração milennium –, originária da classe média urbana, se transformou em catalisador do descontentamento da população. A truculência da repressão policial foi outro fator da ampliação e repercussão do movimento. A classe média, ofendida sistematicamente pelos impostos altos e serviços ruins, passou a defender ‘seus filhos’”.

Sobre esta nova formação paira um clima de alarme, e a cada dia é mais visível e tensa a divisão entre os setores de esquerda e direita, que agora reivindica a liderança das manifestações. Uma nova tendência direitista (que não se identifica como tal, sjea intencionalmente ou por desinformação) prega a despolitização dos movimentos populares. As disputas também se encontram entre os próprios manifestantes. Kauê Vieira, de 23 anos, morador do Grajaú (extremo sul da cidade) e militante do movimento negro, relata um caso de intimidação: “Estive na Avenida Paulista no ato de comemoração do Movimento Passe Livre (MPL). Vi muitas pessoas felizes em assistir os jovens nas ruas, mas também vi um lado conservador e até grupos neonazistas que agrediram pessoas  que portavam bandeiras de partido ou que apenas vestiam vermelho. Eu estava junto com um grupo do MPL e fomos encurralados por estes extremistas. Durante as manifestações, muitos direitistas saíram às ruas com seu preconceito e intolerância”, narrou.

Éder Souza, de 28 anos, estudante de História e professor num cursinho pré-universitário, assume uma postura política de direita e vê a manifestação com outros olhos. “Até na cor da bandeira essas pessoas querem hegemonizar a massa, querem que todas sejam vermelhas, e rejeitam os símbolos pátrios, aqueles que justamente unem a população, com o pífio argumento de que é ‘fascismo’. Eles demonstram que precisam aprender o que significa realmente este termo e quais são as suas implicações políticas antes de fazer uma análise tão simplificada do sentimento patriótico que emergiu no país”, criticou.

O jornalista Pedro Ribeiro Nogueira, agredido pela polícia e preso durante uma das manifestações, afirmou que os atos populares representam para ele “um misto de dor e alegria que é difícil simbolizar. Fui agredido, preso e tenho medo que o processo contra mim avance. Mas neste sentimento agridoce fica evidente a alegria de ver um movimento popular que floresce. É algo pelo qual esperei a vida inteira”, confessou. Nogueira ainda responde a um processo judicial e está impedido por uma medida cautelar de acompanhar as manifestações.

Embora uma parcela da população siga cada vez mais alarmada com notícias de grupos que se formam ao redor de princípios extremistas e pouco democráticos, ainda se sobrepõe um clima de otimismo – em muitos casos, atento e cauteloso. Kauê Vieira considera a revogação do aumento da tarifa dos ônibus mais um ponto de partida do que chegada. “O que aconteceu em São Paulo com a redução da tarifa, por exemplo, deve ser considerada sim uma vitória. Quando foi que um governo de extrema direita como o do PSDB ouviu o povo e atendeu seus pedidos? Eu não me lembro. Então esse é um motivo de comemoração. Mas sem carnaval, afinal de contas esta é, se muito, a ponta do iceberg”, ponderou. Ele afirma estar pouco entusiasmado com as mudanças: “Fiquei satisfeito com o que a presidenta Dilma fez, especialmente em receber os representantes dos movimentos. É disso que precisamos, de políticos que ouçam e recebam a população em seus gabinetes, afinal de contas estamos numa democracia representativa, então o povo precisa ser ouvido. Porém devemos ficar de olho e fiscalizar de perto o governo. Mesmo com as manifestações, as coisas não mudaram. Renan [Calheiros] e [José] Sarney circulam livremente por aí. Estas decisões passam pelas mãos deles. Exatamente por isso é preciso haver uma reforma política no país, para nos livrarmos destes políticos que são uma espécie de câncer e que empacam o crescimento do Brasil”, analisou o ativista.

A dúvida que paira sobre a cidade ainda é se que ‘o gigante’ voltará a adormecer. É possível ouvir murmúrios de lamentação daqueles quem têm sua rotina prejudicada pelas manifestações menores que continuam acontecendo. Um entregador de pizza que pede “um descanso” das atribulações, uma passageira de ônibus que perdeu viagem pois a avenida estava fechada – mas sorriu quando descobriu que o ato era dirigido contra o projeto de “cura gay” de um deputado evangélico.

As que existem agora são manifestações muito menores em adesão, mas com propósitos mais específicos. “Acredito que os protestos diminuirão, como tem sido a tônica de grande parte das manifestações de massa contemporâneas. Mas a mensagem está clara, o povo pode conquistar muitas coisas indo às ruas, a disposição do brasileiro de se levantar contra o seu governo em caso de assim achar necessário agora é outra”, analisa Éder Souza. “Se antes era mal visto protestar, agora está mais fácil mobilizar pessoas de diversos segmentos sociais para diferentes causas”, completa.

Para Eduardo Fonseca, as manifestações foram fruto de uma “angústia coletiva” y representam o reconhecimento da população de sua força, bem como a descoberta de si como agente político efetivo. O professor acredita que esta voz será ouvida em algumas pautas do governo – embora cerceada por elementos de crise financeira e aos cercos com as reeleições. Mas é fundamental compreender que “a mobilização de mais de um milhão de pessoas pelas ruas assustou muita gente. Quem ficar parado e não assumir uma posição clara e ativa, ficará à margem do processo político e histórico”, finaliza.

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