São Paulo, Brasil. Um espaço cultural autônomo alternativo à cultura mercantilizada foi inaugurado dia 6 de agosto na capital paulista. A ideia do Espaço Autônomo Casa Mafalda, como foi batizada a sede cultural está sendo encampada pelo Autônomos & Autônomas FC, time de futebol – hoje composto por duas equipes de futebol de campo masculino e um de futsal feminino – criado em 2006 e autogerido por punks, anarquistas e ativistas de São Paulo. “Somos, para além de time, um coletivo. E tentamos pensar e praticar nossas relações de uma forma horizontal, libertária, diferente da imposição hierárquica e individualista que domina o cotidiano de quase todos pelo planeta”, definem-se.
Espaços como o Impróprio e o Ay Carmela, centros político-culturais autogestionários mantidos por organizações e movimentos sociais da cidade primordialmente ligados a ideais libertários, que sediavam reuniões, shows e debates entre outras atividades, tiveram de fechar suas portas esse ano por distintas razões relacionadas a dificuldades estruturais e financeiras. Influenciados por espaços como esses, e impulsionados pelo vazio deixado pelas baixas dos mesmos, o Autônomos resolveu por em prática a ideia da Casa Mafalda.
A escolha do nome, homenageando a contestadora personagem do cartunista argentino Quino, foi feita também para fazer menção ao bairro Chácara Mafalda que abrigava o primeiro campo usado pelo time. “Com o surgimento do nosso time feminino, a ideia ficou ainda mais forte, e nada mais justo do que nomear nossa casa, palavra no feminino, com o nome de nossa mascote”, esclarece o grupo, em seu site.
A programação do primeiro final de semana em que o antigo estúdio de música passou a constituir a Casa Mafalda contou com uma série de atividades. Mostras de vídeos sobre a catarse coletiva que o futebol proporciona; pintura do salão principal da Casa pelo coletivo Arte Libertária, que se inspira na técnica de muralismo mexicana enquanto prática artística de resistência; grafitagem da área externa; debate sobre que é esperado do próprio espaço que se inicia com o Centro de Mídia Independente (CMI), o Movimento Passe Livre (MPL), entre outros movimentos próximos; debate “Copa para quem?” sobre a Copa do Mundo de Futebol, a ser realizada no Brasil em 2012, com a presença da Associação Nacional dos Torcedores, Comitê Popular Copa SP, Frente de Luta por Moradia, entre outros.
“Nos parece que a cultura e os valores do mercado engolem cada vez mais a população e a cidade. Discutir o mundo numa visão inversa a essa é uma das coisas mais importantes que pode ser feita na Casa”, explica Gabriel Brito, integrante do Auto, como é carinhosamente apelidado o time de futebol. “Oferecer um espaço para que as pessoas possam ouvir a voz de movimentos sociais e ativistas combativos, que ainda se esforçam por um modelo diferente e mais justo de sociedade. Discutir idéias, política – outro assunto cada vez mais em baixa – é uma das funções fundamentais, além de promover a cultura das mais diversas formas”, expõe Brito, a respeito dos objetivos do novo espaço. “Trazer de volta a velha cultura do ‘faça você mesmo’ que o punk massificou e hoje se perdeu um pouco, tentar viabilizar um reempoderamento das pessoas em todas as esferas da vida, retomar o saber fazer das coisas”, completa.
As premissas básicas do time de futebol – anticapitalista, anti-fascista, anti-racista e anti-sexista – permearão as atividades a serem organizadas na Casa Mafalda, que pretende dar um passo na carência de espaços sociais e culturais libertários em São Paulo. “A Casa Mafalda está junto com todos os movimentos que tem consenso com essas pautas, além dos amantes do futebol e os que se colocam contra à mercantilização do jogo mais bonito do mundo”, opina Gabriel. Partindo da premissa de que tanto a cultura quanto o futebol passam por um avançado processo de balizamento pelo capital e pelos objetivos do lucro, de modo a empobrecer as potencialidades dessas duas esferas, o espaço pretende abrigar e dialogar com grupos e atores marginalizados desse mainstream.
Autônomos e Autônomas FC
Os dez ideias do futebol autônomo que o time elenca são: “faça você mesmo”, “ninguém é melhor que ninguém”, “compromisso importa tanto quanto jogar bem”, “o jogo é coletivo”, “todos cabem”, “liberdade através do futebol”, “torcer e jogar ao mesmo tempo”, “faça amigos e não inimigos”, “sem juiz sempre que puder” e “fora de campo também importa”. Depois de três anos da constituição do coletivo, tempo no qual pensaram que estavam sozinhos no futebol autogestionário, iniciou-se contato com times parecidos mundo afora. “Em 2009 descobrimos um time inglês, o Easton Cowboys & Cowgirls, que desde 1992 está na mesma sintonia! Depois de visitarem os palestinos e os zapatistas em Chiapas, em 2009 foi a vez de estarem por aqui pra jogar e trocar experiências conosco”, conta o Auto.
Durante o ano passado, foi a vez do Auto sair do Brasil. Participaram da Copa do Mundo Alternativa, realizada em Yorkshire (Inglaterra), evento organizado anualmente por times europeus libertários. “Um encontro até então europeu de diversas pessoas e movimentos sociais não-hierárquicos, que tivemos a chance de conhecer nos 10 dias que ficamos por lá e por Bristol, cidade natal do Easton”, contam. A partir dessa experiência, estão se organizando junto com o Club Social Atlético y Deportivo Che Guevara, time de Córdoba (Argentina), para organizar a primeira Copa América Alternativa, em 2012.
Além do futebol, os integrantes do Auto também participam de movimentos sociais como o Movimento pelo Passe Livre (MPL), a Frente de Luta por Moradia (FLM), o Bloco Carnavalesco Filhos da Santa e a Associação Nacional dos Torcedores..
Independência financeira da Casa Mafalda
“Há cerca de dois meses uma das bandas de gente do time tocou no Estúdio Fábrica Lapa, casa de shows e festas na Lapa, e descobrimos que também estava fechando. Consultamos o dono do ponto e ele disse que passaria adiante mesmo”, conta Gabriel. A ideia de adquirir o lugar, lançada por Danilo Mandioca, um dos fundadores do time, foi aceita com empolgação pelo resto do coletivo, que enfrenta agora o primeiro desafio. Para adquirir o ponto do local, é necessário arrecadar R$60 mil.
Apesar de doações relevantes de alguns integrantes do Auto, e inclusive do atual dono do estúdio, a quantia levantada gira em torno de R$30 mil. Para juntar o restante do dinheiro necessário, o grupo elaborou um sistema de “apadrinhamento / amadrinhamento” da casa para arrecadar doações: de acordo com o valor doado, a pessoa recebe em troca horas de ensaio no estúdio (caso tenha uma banda), datas gratuitas para realização de eventos, entrada livre na casa em dias de shows e festas, camiseta ou outros materiais do Autônomos & Autônomas FC. “O objetivo é juntar o maior dinheiro possível por meio desse plano, de modo a quitar ao menos a primeira parte, e evitar o financiamento bancário, que será o último recurso para eventualmente completar o valor necessário”, diz Gabriel.
Autogestão do espaço
Apesar do Autônomos & Autônomas FC estar na linha de frente do projeto, outros grupos e movimentos vêm se aproximando. “Participamos de lutas e eventos com outros coletivos e movimentos sociais, e certamente pretendemos usar o espaço em parceria com eles”, afirma Gabriel.
“Teremos bastante trabalho voluntário no começo, mas pretendemos ter uma organização mais definitiva depois de determinado tempo, tendo claro o coletivo de pessoas que efetivamente cuidam do lugar, trabalham, enfim, dedicam seu tempo, e que serão as maiores responsáveis pelo funcionamento cotidiano da Casa”, conta Brito, que conclui: “Esperamos que depois de quitadas as dívidas possamos trabalhar com um sistema de trabalho remunerado justo, de acordo com o tempo de trabalho de cada um, e com participação de todos em todas as tarefas, tanto as organizativas como as mais braçais mesmo”.
A Casa Mafalda não visará lucro. O dinheiro arrecadado, além de se voltar para o pagamento das dívidas e dos que trabalharem lá, será revertido para o Auto e seus projetos – entre os quais o embrionário time de futebol infantil, a Copa do Mundo Alternativa e um possível jornal impresso. O extrato da arrecadação fica disponível no site do Auto e é atualizado semanalmente.
Para Gabriel, a ideia é fazer desse espaço um “pedaço do que muitos chamam de ‘outro mundo possível’, afeito à justiça social, igualdade, solidariedade e respeito aos direitos de todos os grupos sociais fortemente discriminados e violentados atualmente”.
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