São Paulo, Brasil. “É o que eu falo pra vocês: o rap salva”. Durante as horas que passou conversando com a gente em Campinas, São Paulo, Marcos Fernandes de Omena repetiu diversas vezes esta frase. De fato, o rap é fundamental nos 37 anos de vida de Marcos, cerca de um terço deles vividos atrás das grades. Ouvindo Racionais MC’s conheceu a política, o movimento negro, teve orgulho de sua cor e disposição de lutar pelo respeito a ela.
O Racionais MC’s, principal grupo de rap do Brasil, surgiu no final dos anos 1980 na periferia de São Paulo, trazendo um discurso agressivo contra a opressão às populações marginalizadas. Quem conhece um pouco de hip hop no Brasil certamente tem referência nos nomes de Ice Blue, KL Jay, Edi Rock e Mano Brown. Não por acaso, o grupo foi a principal influência para Marcos, que pouco tempo depois de se envolver com a música, adotou seu “nome de guerra”, pelo qual todos o conhecem: Dexter.
Atrás de dinheiro para uma gravação, Dexter buscou “meios não convencionais” e acabou preso. Já havia cumprido o período de pena que lhe permitiria progredir para outro regime que não o fechado mas, sem saber desse direito, aproveitou a primeira oportunidade que teve para fugir. Em quatro dias participou de cinco assaltos e um homicídio. Voltou condenado a 38 anos de cadeia. Primeiro no grupo 509-E (número da cela que ocupava com o cantor Afro-X no Carandiru) depois em carreira solo, seguiu compondo e gravando, se tornando um dos principais nomes do rap nacional. Em 2009 lançou o disco Dexter e convidados – ao vivo, com participações de grandes nomes do hip hop brasileiro.
Atualmente em regime semi-aberto, trabalha durante o dia numa loja de roupas e discos em Campinas, onde também recebe seus amigos e parceiros de rap. Às 18h tem que estar de volta à Hortolândia, para dormir na prisão. Entre trabalho na loja e diversas chamadas no celular, lapida letras e músicas para um novo disco a ser lançado ano que vem, além de planejar escrever um livro. Conversou conosco sobre sua trajetória, suas posições políticas e o atual cenário da música brasileira.
Você pode começar contando da sua trajetória, onde você cresceu?
Nasci no dia 17 de agosto de 1973, em São Paulo e fui criado nas ruas do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo. Minha mãe biológica não teve condições de me criar e aos 13 dias de vida me entregou para uma mulher, Dona Marina Maria de Omena, minha mãe de fato, porque mãe é aquela que cria, não aquela que põe no mundo. Vivia nas ruas de terra, nos campinhos do Jardim Calux, um morro que desde aquela época era bastante respeitado. Minha mãe já tinha duas filhas e era viúva quando me pegou pra criar. Ela dava uma segurada em mim, na época tinha uns bailes muito da hora, baile de preto, da função. Ela tinha medo, por conta da malandragem. Ela queria que eu vivesse uma vida padronizada. Acho que é o sonho de toda mãe da periferia, que o filho simplesmente estude, vire um operário padrão, não vire ladrão. Quando o 509-E estourou eu consegui ganhar um dinheiro e a gente fez uma casinha melhor, um sobrado para minha mãe morar.
E a sua adolescência?
No Calux, vi muitos amigos partirem pro crime e não voltarem mais. Vi muitos amigos infelizmente morrerem com essa política retardada que existe dentro da periferia. Essa coisa enraizada da droga, do álcool, e de você querer ser alguém dentro da quebrada. Querer ter um carro, uma mina da hora. Isso muitas vezes o sistema não te oferece, o salário que a gente ganha não permite. Muitos caras não suportam não conseguir esses sonhos de consumo, e vão buscar por outros caminhos, se revoltam. Há muito tempo percebi que a televisão é a pior doutrinadora que nós temos. E a Igreja Católica também, claro. Mas cada um de nós tem uma TV dentro de casa, não um padre. Nunca vi ninguém falar que foi roubar pra comprar os livros, que são caros também, entendeu?
Quais os fatores que geram essa revolta?
São vários os problemas de um cara que mora dentro da favela. Se ele não joga bola, se ele não faz um samba, quem é esse cara? O estudo é precário. Aí o pretinho vai na escola e ouve que o Zumbi [líder negro que fundou o quilombo Palmares, um dos maiores focos de resistência negra da época da escravidão no Brasil] foi assassinado por Domingos Jorge Velho e ponto. O branquinho aprende que na história existiram heróis e sente orgulho de ser branco, mas não sente orgulho de ser pobre. Então é uma confusão de sentimentos. Eu também era um cara revoltado, às vezes é até inconsciente. Já peguei numa arma e fui assaltar os playboy. Mas eu não fui porque eu tinha consciência da minha revolta. Só tempos depois eu entendi o que gera isso. O fato de você ser pobre e ele ter uma condição melhor. Se a gente for puxar o fio da meada a gente vai chegar até a escravidão. O que meu povo herdou? Os pretos e descendentes dos mesmos? Eu consegui entender essas coisas e sair disso através do rap, que é a música do povo, através de outros jovens que entenderam mais cedo que eu, passaram pra mim e eu abracei, falei: “tá aqui minha válvula de escape”.
Como era a sua cabeça quando jovem, vendo os seus amigos e conhecidos do bairro morrendo de graça?
Enquanto você é jovem você sabe que aquilo é uma rotina massacrante, mas não entende porque aquilo acontece, essa política de que a polícia entra na favela pra matar mesmo, que são pagos pra isso, autorizados. Eles têm que mostrar serviço pra sociedade. A gente é um inimigo em potencial, só pelo fato de ter nascido preto, de ser forte, de andar gingando na rua. Tô trabalhando dois paralelos, o social e o racial, que não estão separados. Vamo chegar no shopping aí nós dois, eu com dinheiro e você sem. Você acha que o segurança vai ficar de olho em quem? Em você? Vai ficar em mim. O preto no Brasil é sinônimo de malandragem, de crime, de assalto.
Essas coisas a gente nem sabe antes de ler, se informar, estudar, andar com uma rapaziada com uma mentalidade da hora. Eu sinto muito orgulho de cantar rap, o rap é o melhor amigo que eu tenho, já salvou muitas vidas, já ajudou muita gente a entender as coisas, a ter auto-estima, a discutir de igual pra igual. Hoje você vê meu povo fazendo palestra em faculdade, discutindo com os boy de igual pra igual e até mais, ensinando pros caras como é que as coisas funcionam. Isso é lindo.
Quando você começou a se interessar pelo rap?
A batida do rap acho que em 1984, 1985, eu já ouvia os Metralhas, que cantavam o Rap da abolição e tal. Acho que é coisa de preto mesmo, descendente de africano, a batida do som é outra fita, contagia. Quando eu ouvi o rap, que é derivado do funk, do soul, do blues e tal, aí eu endoidei, as batidas parecem o pulsar do coração. É aquele lance, os caras já tinham a ideia, já sabiam o que era ser preto no Brasil, e a gente ainda não entendia. Decidi fazer rap uns cinco anos depois, em 1990, quando eu ouvi Pânico na Zona Sul, do Racionais. Só que quando eu ouvi essa música foi como se acendesse uma lâmpada: aí o vírus da revolução entrou na minha veia. Comecei a fazer rap no outro dia!
O que você tava lendo na época?
Logo de cara fui ler a autobiografia do Martin Luther King. Hoje eu vejo uns caras fazendo rap de qualquer jeito, eu acho um puta dum desrespeito. Falando de ouro, de carro, de tênis, de mulher. Não dá. As pessoas que se mantém hoje no rap, como linha de frente, a maioria é da minha época, aprenderam a fazer rap dessa forma: tiveram que ler, estudar, buscar o autoconhecimento. Tempos depois que eu comecei a fazer rap, eu ouvi os Racionais cantando “Precisamos de um líder com crédito popular, como Malcolm X em outros tempos foi na América, que seja negro até os ossos, um dos nossos”. Mas espera aí, quem é Malcolm X? Aí fui atrás. Quando eu li Malcolm X, meu Deus, me senti útil, me senti muito bem. Veio o filme “Malcolm X”, fui lá assistir, o cinema lotado: os caras do movimento negro, os caras do rap, todo mundo junto, fiquei feliz, pensei “tamo junto, tamo nos organizando”. Nem o movimento negro conseguiu isso, o rap é foda. Acho que o movimento negro conseguiu reuniões, mas o rap transcendeu, conseguiu trazer quem precisava vir: a juventude. Quando a juventude tá junto ninguém segura. A música tem esse poder, o poder da transformação.
Então o rap te instigou a ir atrás de um conhecimento que a escola não tinha estimulado?
Exatamente. Nem a política da escola alcançou o que o rap deu pra gente. Vem um intelectual pra mim e fala “Dexter, você tem que ler Malcolm X”. Mas aí, o intelectual vai falar o que é que eu tenho que ler? Aí chega um parceiro e fala: “Negão, eu li lá e foi foda, você tem que ler”, imediatamente passo a me interessar. Percebe a diferença? É a identificação. Foi isso que aconteceu com o rap. O rap é pra mim um grande professor.
Você já era o Dexter?
Já era o Dexter. Logo quando eu li a autobiografia do Martin Luther King eu descobri que um dos filhos dele chama-se Dexter. Fui ao dicionário e vi que Dexter significa destro, de direito, correto, passa pelo esperto, sagaz. E me identifiquei com o nome porque pra sobreviver na periferia você tem que ser isso mesmo, senão você vai ser cobrado depois. Você tem que ser um cara ligeiro, porque a polícia está lá pra te exterminar. Aí quando eu li e assisti Malcolm X descobri que o X representa o desconhecido, e os caras do islã usam o X pra representar um sobrenome africano que eles não conhecem. Aí o X do Dexter também ganhou mais força. Com o passar do tempo ninguém mais me chamava de Marquinhos ou de Marcos.
Qual foi o primeiro trabalho do Dexter?
No final de 97 o grupo que eu fazia parte, Tribunal Popular, recebeu a proposta de gravar um single. Entramos em estúdio aí eu chamei o Edi Rock pra participar de uma música chamada De preto pra preto e o Brown pra produzir a Legítima Defesa. Logo em seguida a gravadora ficou sem o dinheiro pra pagar o estúdio. Eu falei “mano e agora? Tenho o Brown e o Edi Rock gravando com a gente, como vou perder essa oportunidade? Não posso!”. E aí eu fui buscar o dinheiro de uma forma não tão convencional. Foi quando eu fui preso. O disco acabou saindo, e eu continuei preso. Era janeiro de 98, e fiquei um ano sem rap, meio frustrado e tal. Graças a Deus, eu consegui fazer do pior o melhor. Um tempo depois comecei a fazer letras e tal. Eu sempre fui um cara que vivi ali, entre a linha do bem e do mal.
Mas também o criem não é um caminho que você necessariamente condene, certo? Porque na música Como vai seu mundo quando você fala do crime, dá o conselho: “se tiver como, desista”…
Por que que eu falo “se tiver como”? Tem o cara que não quer estudar, não canta rap, não joga bola, não lê, não escreve, o que sobra prum cara desse? É pra ele que eu falo: “se tiver como”. Tem cara que não tem, eu tenho vários parceiros lá dentro que me falam: “Dexter, queria eu ter a oportunidade que você teve, irmão, que eu também abandonaria o crime. Mas infelizmente eu tô nele, não sei fazer outra coisa”. Ou seja, é um cara que tá condenado a morrer no crime. O rap não vai ter como mudar a vida de todo mundo.
Você podia contar um pouco do seu dia a dia na cadeia, como surgiu o 509-E. Nas suas letras você fala muito em liberdade…
A liberdade física dentro de uma prisão é 100% presente. Passado um tempo eu comecei a me intitular exilado e não preso. Passei a me identificar como um cara que foi afastado da família e dos amigos por um determinado tempo, mas que um dia vai voltar. E na prisão a recuperação por parte do sistema não existe, política de ressocialização não tem, tudo tem que ser iniciativa própria. Pouco se estuda, pouco se trabalha dentro de uma prisão, seres humanos são jogados dentro de um quadrado dois por dois e já era, se virem. Em algumas cadeias você convive com ratos, baratas, percevejos. Pra resumir: a cadeia não recupera ninguém, ela traz mais revolta, mais mágoa, mais tristeza.
E como foi continuar produzindo música lá dentro?
O que eu fiz foi pegar o que tinha de melhor e apresentar. Tive essa sorte, de poder mostrar do que eu era capaz, e me foi dada essa oportunidade, até mesmo pelo histórico da Casa de Detenção. Porque quando o 509-E explodiu já tinha um trabalho sendo desenvolvido ali dentro, “Talentos aprisionados”, por uma pessoa que trabalhava na época com teatro. No meio desse trabalho foi descoberto o 509-E, a gente teve uma abertura muito grande, foram 7 meses de saídas: shows, palestras em escolas e faculdades, trocando ideia com a molecada. Em 2003 o 509-E acabou porque o Afro-x foi pra rua e a gente já não encontrou motivos pra continuar juntos, eu tava falando de umas coisas, ele tava vivendo outras. Em 2004 eu começo a trabalhar o disco Exilado sim, preso não, foi um disco totalmente gravado dentro da prisão. O disco foi lançado em 2005, e em uma semana a gente vendeu 3 mil cópias.
Como avalia o rap hoje? Essa questão mesmo que você falou que é preciso respeitar o rap e que tem gente que às vezes não faz isso…
Tudo evoluiu né? E às vezes a evolução não é uma coisa muito boa. Acho que antes de você começar a falar de ouro, de carro, de mulheres, você tem que ter algumas coisas que são prioridades na vida de um ser humano. Por exemplo, às vezes o cara não tem nem seguro de saúde, nem casa pra morar e ele tá falando de carro e de ouro na música dele. Será que realmente faz parte do mundo dele isso daí? Acho que esse rap cumpre o mesmo papel que a televisão, te incentiva a ter coisas que você não tem. Esse rap consumista, rap glamoroso, rap de ostentação, pode te levar a caminhos diferentes do que aquele rap que eu conheci, que me incentivou a fazer outras coisas.
Parece muito influenciado pelo rap gringo né?
Parece não, é. Todo mundo quer ser 50 Cent. Só que a rapaziada esquece que o 50 Cent veio no Brasil e desprezou os brasileiros. Um fã subiu no palco, ele se assustou e empurrou o cara com violência, pediu pra trancar o camarim pra ele passar por trás. Isso aí é o rap americano, é o americano em si, os caras têm um lado sexista pra caralho, sei lá qual é que é a fita. E no Brasil a gente tá em outra parada, outra dimensão, outra caminhada.
Você que teve todo esse tempo preso, como diria que é a cabeça do preso para a política? Desacreditado? Revoltado? Tá a fim de participar?
Não existe uma política de ressocialização. E voto, preso não vota, né? A participação do preso na política é inexistente na verdade, porque não tem incentivo. Em 2002 quando o Lula foi entrar, era Serra (PSDB) e Lula (PT) [mesmos partidos que disputam a presidência este outubro de 2010]. Foi traçado um plano dentro das cadeias, de informação. Resumindo, se o Serra entrar ele é de extrema direita, só quer construir cadeia, nossa vida aqui vai piorar, enquanto o Lula não, ele é mais aberto, mais participativo, mais ser humano. Então houve um movimento muito grande de apoio ao Lula dentro do sistema, em 2002. Eu vi a força que a gente tem. Uma ideia, uma sementinha plantada, gerou bons frutos. Eu mesmo trabalhei nessa política, de ir de barraco em barraco [cela] trocando ideia com a rapaziada, explicando o que era a política daquele ano, a eleição.
Então você fez campanha pro Lula?
Claro que eu fiz, eu acreditava e acredito no Lula. Acreditava que ele ia mudar algumas coisas, e realmente algumas coisas mudaram. Ele é um cara que veio do povo, que veio da minha quebrada também, de São Bernardo. Eu diria que o Lula é também Flor de Lótus – que é o título do meu novo CD, eu nunca tinha falado isso, hein? É uma planta, originária da Índia, que só nasce no lodo – e eles consideram a mais bonita de lá. Então acho que nós somos uma flor de lótus.
Esse período em que você esteve preso foi exatamente o da consolidação dos comandos dentro das cadeias. Você sentiu essa mudança?
Com certeza. Muita coisa mudou pra melhor, antigamente morria-se muito dentro da prisão, hoje não mais. Foi política implantada: “não morre mais ninguém”. Porque eu acho que os linhas de frente dessa disciplina acreditam que se somos seres humanos somos capazes de conversar pra resolver, de dialogar sem que alguém tenha que morrer e alguém tenha que matar. Acho válido, a vida é muito preciosa. Obviamente existem outras coisas a se considerar dentro da hierarquia do crime e tal. Às vezes sou tachado pela mídia como PCC, porque estou preso e fazendo rap. E eu não sou PCC, eu sou rapper.
Pra encerrar você podia falar algo sobre o papel da sua família durante esse período que passou preso.
Foi muito importante na minha ressocialização os familiares e os amigos. A minha esposa foi imprescindível pra minha retomada, até mesmo no rap. Família é imprescindível pro presidiário, se você é abandonado as perspectivas de coisas boas se tornam remotas.