Henriqueta Cavalcante: “Parecem vidas sem valor nas prateleiras do supermercado”

Depoimento recolhido por Joana Moncau em Belém, Pará, Brasil.

Me chamo irmã Henriqueta Cavalcante, e coordeno a Comissão Justiça e Paz do Regional Norte 2 da CNBB, que abrange o Pará e o Amapá. A Comissão tem ganhado muita credibilidade e reconhecimento pelo enfrentamento da exploração sexual e do tráfico de pessoas. Uma realidade cruel aqui no Pará. São dois crimes interligados, com redes organizadas, constituídas, muito bem fortalecidas e que estão interligadas com mais duas outras redes criminosas, que é o tráfico de drogas e o tráfico de armas.

Esses crimes interagem, se interligam, e tem uma atuação muito forte aqui no Pará. Nosso trabalho tem sido intensivo no eixo da promoção, da prevenção, onde temos investido na região do arquipélago do Marajós, nos 16 municípios, um trabalho informativo intenso, envolvendo vários atores.

O que encontramos é uma realidade muito dura e cruel, é uma situação de descaso, de abandono, de miséria. Além de um grande número de crianças violentadas sexualmente, traficadas, nós encontramos muitas mazelas que são causadas pelos gestores desses municípios. Isto é, pela absurda inexistência de políticas públicas: não existe controle dos recursos que entram, não existe controle social, não existe controle financeiro, não existe controle do serviço desses gestores. Não há dúvida nenhuma que isso também fortalece a entrada de crianças e adultos na dinâmica, na arquitetura dessas redes criminosas, porque a miséria é muito grande. A desigualdade social faz com que as crianças busquem uma outra forma de se auto sustentarem. Essa é uma realidade.

Meu trabalho traz muito risco, porque você tem que enfrentar essas redes. É um afronto para as redes criminosas, o trabalho preventivo que fazemos através das formações, das iniciativas de campanhas, caminhadas, divulgação de material para ajudar as pessoas a ficarem mais esclarecidas, até mesmo no encaminhamento de denuncias. O resultado disso tudo é também perigosos. É um trabalho que nos deixa em uma situação de vulnerabilidade muito grande. Tanto as famílias que denunciam, como nós, defensores de direitos humanos. E é justamente o que vem acontecendo hoje na minha vida.

Ameaçada

Comecei a receber ameaças em 2009, por conta do enfrentamento da exploração sexual da criança e adolescentes que elas começaram. Somos um espaço aberto de acolhimento de denuncias e encaminhamento delas, isso acabou incomodando. Incomodou pessoas grandes, poderosas do Pará, e trouxe para mim uma situação de risco e de perigo. Passei a ser ameaçada mesmo. Ameaçada de morte.

Não tenho dúvida nenhuma que as redes criminosas têm um desejo muito grande que, de alguma maneira, eu seja responsabilizada por eles e a responsabilização deles significa que eu possa pagar por ter denunciado. Esse é um fator que me leva hoje a sofrer ameaças de morte por telefone, indiretamente, diretamente. Os ameaçadores arquitetam uma maneira de nos eliminar, porque eles são inteligentes, eles são estratégicos. Assim como são estratégicos em mandar dizer que eu estou incomodando-os, eles usam várias maneiras de mandar recados, a gente acaba sabendo.

Reposta a resultados.

Não há duvida de que as ameaças são em resposta a um resultado satisfatório que foi a condenação de uma pessoa influente do Pará. Infelizmente ele foi condenado, mas está solto. Porque esse é o estado marcado pela cultura da impunidade. Aqui a justiça desse estado só serve para quem não tem dinheiro. Quem tem dinheiro não vai para cadeia.

Existe um caso muito emblemático nesse estado de várias autoridades que, inclusive nós da Comissão, pensávamos que estavam fortalecendo o direito da criança e do adolescente e, pelo contrário, estavam fortalecendo as redes criminosas. Um caso emblemático de uma pessoa poderosa desse estado que chegou a prestar depoimento e a justiça comprovou com todas as provas, com toda a materialidade, com todo o resultado do inquérito policial, o comprometimento dessa autoridade na rede de exploração sexual. Foi quando minha situação de segurança em relação a essa rede criminosa começou a ficar comprometida.

Desde então, lamentavelmente, já não tenho a liberdade de me locomover com tranquilidade, porque sei que de alguma maneira eu posso ser surpreendida por algum mandado de alguns deles. Esse caso veio a público, foi divulgado, a imprensa deu visibilidade, mas eu não quero mais falar com detalhes, porque não me sinto mais tranquila para falar disso. Quando eu tive a coragem de levar para frente a denuncia na Justiça aqui do estado, para que uma das pessoas que me ameaçou pudesse responder, o caso foi abafado. Então prefiro nem falar mais.

Motivação para seguir

O que me dá força para seguir, acho que é a busca incessante das famílias que vem pedir socorro. Porque aqui ainda é um espaço de confiança, onde damos credibilidade para as famílias. Você vê o desespero da mãe no telefone que está em outra cidade e que o Juiz não condena o pedófilo que violentou sua filha porque ela é portadora de deficiência mental. Essas mães me ligam para pedir ajuda, perguntando como fazer. Aí você tem que arrumar um jeito. Acho que a própria situação de descaso, de abandono, que muitas dessas famílias que nos procuram vivem, é o que nos dá força.

As crianças me dão força. As próprias vítimas adultas me dão força quando elas se desesperam por justiça. Não há dúvida que a força maior vem de Deus. Deus é o sustento, nele que acredito, que encontro resposta para continuar lutando e acreditando que tudo que nós fazemos não é em vão. Que é um trabalho necessário, que, de fato, um dia nós vamos, nem que seja somente de Deus, nós vamos ter o resultado. Porque na justiça do Pará não dá mais para acreditar.

O cotidiano de luta

Aqui diariamente nós recebemos denúncias, diariamente. Não há um dia sequer, que nós não recebemos denúncia de exploração sexual, em muitos casos interligados com o tráfico. Infelizmente, no Pará a incidência de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual é enorme.

O Crime que envolve o tráfico de pessoas, nós ainda não temos um referencial estatístico, porque muitas famílias ainda não denunciaram, muitas vítimas ainda estão silenciadas, porque tem medo. Porque denunciam, mas e depois? Quem vai dar proteção contra essas redes que são poderosas e organizadas? Muitas vezes família sabe, mas ainda não considera isso como um crime.

Muitas pessoas que são traficadas são enganadas com promessas de emprego, de crescimento econômico, e, quando chegam no local de destino, a realidade é outra, o cenário é outro. Para surpresa de muitos, até o passaporte, a passagem, que chega com muita facilidade, é dívida. E quando chega lá tem que trabalhar, trabalhar, trabalhar para poder pagar essa dívida. Essa dívida só aumenta, porque é preciso dormir e comer. A dívida da pessoa não tem mais fim. Além de traficada, ela passa a viver na condição de trabalho escravo. Aí o sofrimento da pessoa passa a ser ainda pior.

Aqui nessa região do Pará e Amapá, a maioria do tráfico de pessoas é para fora do país e para exploração sexual. Principalmente para o Suriname e Caiena (capital da Guiana Francesa). Estive em Suriname e fiquei pasma, a maioria das pessoas que eram traficadas eram paraenses. No Amapá tem uma rota ainda mais fácil, a maioria das meninas sai pelo Oiapoque, de lá é muito rápido chegar tanto em Suriname como em Caiena. Mas muitas vão também para outros países: Holanda, França…

Reação

A sociedade civil tem um potencial enorme de contribuição, mas somente nós, não contemplamos o que é preciso para acabar. Precisamos dos órgãos competentes, precisamos de estado que possa entrar com o seu papel, com sua competência e responsabilidade. O que não podemos fazer é ficarmos com o perfil de uma sociedade que tolera, a tolerância é perigosa. A melhor maneira de enfraquecer essas redes criminosas é ninguém entrar nelas, ninguém responder aos desejos delas. Acho que quando as pessoas tem informação, são esclarecidas, elas podem enfraquecer.

E é isso que nós precisamos desvendar, por isso vamos realizamos campanhas de informação. Nós queremos com isso fomentar ações de prevenção, mas também de repressão, precisamos fazer com que esses criminosos sejam responsabilizados. Temos denuncias aqui de redes criminosas que estão ganhando muito dinheiro. Segundo dados da ONU o tráfico de pessoas é o segundo que mais dá lucro, está perdendo apenas para o tráfico de drogas.

Minha consciência não me permite ficar calada diante de um crime como esse, onde a vida das pessoas se tornou mercadoria barata. O corpo da pessoa é mercadoria, parece que as vidas humanas estão na prateleira dos supermercados e com um valor muito baixo, ou sem nenhum valor.

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3 Respuestas a “Henriqueta Cavalcante: “Parecem vidas sem valor nas prateleiras do supermercado””

  1. Triste saber que ainda hoje em dia acontece esse tipo de crime e sem punição. SAber que pessoas dispões de vidas alheias com o consentimento do Poder Público porque tem dinheiro, status. qu Deus continue dando forçass para a irmã Henriqueta, e que nós, que não estamos diretamente envolvidos, possamos fazer a nossa parte, orando e nos dispondo a fazer o que é certo, pois só assim construiremos um mundo melhor.

  2. Marcelo

    Ai desses corruptos quando estiverem de frente com o Justo Juiz. E ai daqueles que são clientes desse tipo de comécio e dos que participam dessa imundícia. Deus banirá eternamente da sua presença os tais pecadores se não arrependerem dos seus pecados. Glória a Deus!

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