Quando os rolêzinhos passam da ponte pra lá

Gabriela Moncau

O seguranças do shopping Itaquera, na zona leste da cidade de São Paulo, se entreolharam. Era 7 de dezembro, os enfeites natalinos davam o tom do período em que o consumo nos grandes e ricos centros comerciais estão no pico. Mas o público que se aproximava não era o costumeiro. Jovens da periferia, muitos negros, seis mil deles. Claro, o shopping é aberto a todos. Mas pra eles não. Os seguranças foram orientados a chamar reforço, a “ordem” havia sido “perturbada”. Em pouco tempo chega a polícia militar.

De lá pra cá, dezenas de rolêzinhos já aconteceram e continuam sendo marcados. Muitos deles marcados por bombas, cassetetes, detenções, boletins de ocorrência, lojas fechando, clientela correndo, tumulto.

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Vinicius se olha no espelho. Dá uma conferida no sorriso azul (a nova moda são elásticos coloridos nos dentes), bota a corrente de ouro, óculos escuros. Ajeita o boné, que combina com o vermelho da camisa da Lacoste. O tênis, da Adidas. Aos 17 anos, o morador do Capão Redondo, periferia na zona sul da capital paulista, já tá se acostumando com a fama.

Um dos criadores do que ficou conhecido como rolêzinho, ele hoje tem mais de 90 mil seguidores no facebook. A história começa um ano atrás, quando ele se juntou com amigos pra fazer uns vídeos, “porque o facebook tava muito parado”. “A gente caça os assuntos do momento e faz uns vídeos engraçados. E o pessoal foi seguindo, gostando, as minas admirando” conta, sentado na frente do computador.

Do sucesso na rede social, surgiram os “encontros de fãs”: “pra gente se conhecer, beijar na boca, tirar fotos, curtir. E como foi ficando grande, resolvemos criar o rolêzinho, é pra todo mundo da periferia curtir”, descreve. Escolheram o shopping por ser bom ponto de referência, além de ter lojas, cinema e lanches.

“Se os universitários não puderem se encontrar na frente da faculdade, o fariam no bar; na periferia, ficar no bar é pagar para vacilar e virar número que engorda as matérias sobre chacinas”, resume o poeta e escritor de literatura marginal, Ferréz, no artigo “Tudo nosso, nada nosso”.

Camila tem 14 anos e já foi em dois rolêzinhos. O primeiro no shopping, o segundo no parque Ibirapuera. Ansiosa e arrumada, explica o que a levou até lá: “Vim tirar foto com o Alemão e o Vinicius Andrade, porque eles são famosinhos”.

Os rolêzinhos foram crescendo e se espalhando. Já aconteceram nos shoppings Itaquera, Campo Limpo, Jardim Sul, Tucuruvi, JK Iguatemi, Interlagos, Guarulhos, entre outros. Em pouco tempo, as administrações de seis shoppings recorreram à justiça que, como de praxe, lhes deu razão. A multa estabelecida pela justiça aos praticantes do rolêzinho caso entrem no shopping é de R$10 mil (fora a repressão policial, agora legitimada judicialmente). Outros shoppings proibiram a entrada de menores desacompanhados (de baixa renda, claro). O JK Iguatemi, na ânsia de barrar a entrada de qualquer “suspeito”, chegou até a impedir a entrada de funcionários.

“Proíbe som alto, baile funk, passeio deles no shopping, proíbe, proíbe, proíbe. Sai mais barato criar leis do que dar conhecimento”, descreve o texto de Ferréz: “Não existe educação que funcione. Por isso o rolêzinho não é em bibliotecas. Só não vale depositar a culpa no som que é feito na favela “.

“Quando chega um boyzinho filhinho de papai eles não falam nada. Nóis que vem com a corrente, o boné, a polícia gosta de bater. Acho que tem muito racismo, preconceito envolvido nisso. Nem sabem da nossa história, as dificuldades que a gente passa na favela. Eles falam ‘ah, é funkeiro, favelado’”, opina Vinicius.

A música que gostam é o funk ostentação, que evoca o luxo e o consumo. “A gente sempre ouve, usa o que eles fala pra nóis usar. Roupa de marca, a gente tá sempre ligado. Quando lança o funk, cada um dá seu jeito de comprar. Eu faço uns bicos, às vezes minha mãe me ajuda”, fala Vinicius, rodeado de amigos do bairro, também vestidos a caráter.

Com o acompanhamento das palmas pra dar o ritmo, cantam a descrição do que carregam no corpo: “Eu tô de adidas / Tô de nike shox/ De cordão de ouro / E a camisa da lacoste / Eu tava no baile / passando na moral / do nada eu comecei / A passar um grande mal / doidão de whisky / doido de ciró / Eu tava muito lindo / Vestindo uma lacoste / A novinha se assustou / E começou a gritar / Caralho que dor no peito / Novinha me socorre / Quem foi que mordeu? / Quem foi quem foi que mordeu? / O jacaré da lacoste”.

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“Essa situação expõe que o racismo é uma coisa enraizada na cultura brasileira. A classe alta não aceita a existência de grupos organizados nas periferias, querem que o jovem fique preso a favela, a locais que não tem infraestrutura nem mesmo pro divertimento”, defende Jussara, integrante justamente de um grupo organizado de pessoas da periferia. O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) organizou um ato em frente ao Shopping Jardim Sul, o “rolezão”. “Esse apartheid é uma coisa que o movimento social organizado não aceita” completa a militante.

A Uneafro e o Círculo Palmarino também organizaram um “rolê contra o racismo”, no JK Iguatemi. Ao perceber a aproximação dos 400 manifestantes, as portas foram fechadas até o dia seguinte.

Cerca de cem organizações, entre as quais Movimento Negro Unificado (MNU), Quilombo Raça e Classe, Bocada Forte Hip Hop, Associação de Amigos e Familiares de Pres@s (AMPARAR), Mães de Maio e Rede 2 de Outubro, assinaram e divulgaram um manifesto de “apoio à juventude negra, pobre e das periferias da cidade de São Paulo, pelo direito à circulação e a expressão de sua arte e cultura”.

Na opinião da antropóloga Rosana Pinheiro Machado, no texto “Etnografia dos rolêzinhos”, o ato de ir ao shopping é um ato político “porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia”. Mas pondera que há um abismo entre essa apropriação e a ideia de resistência. Para ela, enquanto esses símbolos globais de poder, no caso as marcas, forem adorados, “a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica”.

“A apropriação de espaços símbolos hegemônicos nos mostra uma permanente tensão que tenta resolver a brutal violência que está por trás desse ato”, define a antropóloga. Seu lado otimista, explica, não nega o prazer que esses jovens dizem sentir em se vestir dessa forma e circular pelo shopping “para serem vistos”. Seu lado pessimista vê “menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global”.

“Na selva é assim, você vale o que tem”

“Aqui na favela é assim. A maioria das pessoas te olha pelo que você tem. Se você tem uma roupa de marca e tal, todo mundo quer ser seu amigo, te admira”, argumenta Vinicius. “Agora se você tá largado, de chinelo, fica ignorado na favela”. “1 por amor, 2 por dinheiro, na selva é assim, você vale o que tem”, já dizia Mano Brown (que aliás, nasceu e cresceu no mesmo bairro que Vinicius e muitos outros do rolêzinho).

Soa paradoxal: na sociedade do consumo, grandes centros comerciais barram na base da força – do Estado e da justiça – o acesso de pessoas que adoram, consomem e ostentam seus produtos. E “coisa de favela” é usar roupas caras. “Nóis gosta de mostrar o que nóis pode. Quem é rico gosta de andar mais discreto, um tênis simplesinho, mas uma casa boa”, explica Vinicius. “Eles tira nóis de favela porque a gente gosta de chamar atenção, a gente faz a combinação, usa o óculos, a camisa, a corrente, o boné, tudo de marca”, complementa.

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A repercussão dos rolêzinhos foi tamanha que a presidenta sentiu que tinha que fazer algo. Chamou uma reunião com alguns ministros e representantes da Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop). Como ação, o federal – cujo slogan é “um país de todos” – deliberou por pronunciamentos. “Esse tipo de evento não pode ser tratado como crime”, falou Dilma Rousseff (PT). O ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, ficou encarregado de monitorar o caso.

“Esse movimento tem que ser respeitado, mas tem que ser respeitado num local específico. Shopping center não é lugar para essas pessoas”, falou Nabil Sayhoun, presidente da Alshop, em um programa do Portal Terra.

Enquanto isso, os rolêzinhos seguem acontecendo, mas cada vez mais estão sendo transferidos para parques. “Tem muito de descriminação contra os favelados, contra os pretos. Não acho certo, mas resolvemos sair de lá pra não dar briga”, justificou Plínio Diniz, também morador do Capão Redondo e outro dos organizadores dos rolêzinhos.

No dia 29 de janeiro reuniram-se organizadores de rolêzinhos, representantes de shoppings, Ministério Público e Prefeitura de São Paulo. O acordo foi de que os shoppings serão avisados antes de novos eventos, cuja participação pode ser limitada. As direções dos estabelecimentos, no entanto, não se comprometeram a receber os jovens, mesmo com o aviso prévio. Já a Prefeitura disse à imprensa que pretende usar a articulação dos “rolezeros” para campanhas governamentais.

“A classe media vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe média não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso”, sintetiza Rosana Machado em seu texto. E finaliza: “Se há poesia da política do rolêzinho é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar”.

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